(microsoft word - acidente em matacavallos 15 p\341ginas.doc)

“Quasi dávamos á estampa a presente edição quando fomos informados de que mais uma
família foi enluctada por um bonde n’esta cidade. D’esta feita o infausto se deu a Matacavallos. A
portugueza Maria Couceiro, lavadeira, cuja edade nos é desconhecida, foi colhida pelo carro-motor
Nº 8, conduzido pelo nacional Clemente Euphrasio. O collectivo ia no trajecto que demanda de
Paula Mattos ao Passeio e não reduziu sua furiosa marcha na descida da ladeira, vindo a colher a
desditosa e provocar o infortunio. Atropellada pela poderosa machina, a infeliz veio a fallecer no
proprio local. Era ella moradora em uma cabeça-de-porco das redondezas e foi reconhecida por
visinhos. Até o encerramento da presente edição não havia qualquer parente a reclamal-a no
necroterio da Santa Casa.

“É a quarta vez este anno que um tramcar da Rio de Janeiro Electric Street Railway Company
provoca accidente assemelhado, sendo a segunda com desenlace fatal. Nosso reporter procurou o
escriptorio da empresa de carris, mas foi summariamente despachado da porta.

“E nós, indignados cidadãos, perguntamos: Até quando estes estrangeiros que nos exploram com
preços escorchantes e pessimos serviços estarão matando e mutilando impunemente nossos
compatricios?”

Sobre a mesa da diretoria da Rio de Janeiro Electric Street Railway Company a Folha da Capital estava aberta na página dos faits divers. A notícia do atropelamento estava circundada a lápis vermelho, com destaque ainda maior para a peroração do último parágrafo, sublinhada linha por linha. Outros jornais também lá estavam. Nem todos traziam essa notícia e, dos que a publicavam, nenhum deu o tom grandiloqüente da Folha da Capital. O próprio Mr. Reginald Phineas Gross, diretor-geral da Electric, não sofria qualquer abalo com esses acidentes. Sequer com a repercussão por eles causada. Era o preço a pagar pela introdução do progresso em uma cidade que contrastava sua Avenida Central faceira e cosmopolita, amplos bairros litorâneos cheirando a tinta fresca, com as ruelas tortuosas da suja vila colonial que o Rio de Janeiro ainda era. De mais a mais, Mr. Gross já estava de data marcada para retornar a Londres, dali para a sua fazenda no Kenya e, finalmente, mandar tudo isso aqui à merda. O que realmente irritava Mr. Gross era a insistência, especialmente da Folha da Capital, do seu amigo Diógenes Braga, em dar um tom escandaloso e político ao que ele concebia como uma inexorável e rotineira fatalidade. E, homessa!, de que valiam os vinte contos de réis que aplicava mensalmente em reclames desnecessários naquele jornaleco? Não seria o suficiente para angariar-lhe as devidas simpatias? Pelo visto era pouco. Os reclames não valiam de nada. A Folha da Capital nunca deixava de publicar as notícias desagradáveis associadas à Electric, apenas agora resolvia subir o tom. No calor do instante Gross tomou a decisão que lhe pareceu a mais acertada. Em lugar de pagar para ser atacado, resolveu suspender os anúncios diários das tabelas de horários dos bondes na Folha da Capital e empregar os vinte contos mensais em coisa mais útil. “Vamos ver o que vai achar aquele cretino”, pensou em inglês Mr. Gross, enquanto chamava o escriturário para ditar a carta na qual explicava a Diógenes Braga que, em virtude da contenção de despesas determinada pelo Board, em Londres, suspendia os anúncios a partir da presente data. “O que de pior pode fazer o Diógenes?”, pensava ele com o hemisfério esquerdo, ao mesmo tempo em que com o direito caprichava no estilo da carta. A Folha da Capital de 4 de janeiro de 1921 trazia também outras notas interessantes, como a viagem do Dr. Epitácio Pessoa a Petrópolis, para retomar, com a excelentíssima família, sua vilegiatura de verão: a coluna Movimento do Porto dava conta da chegada para o dia seguinte, entre outros, do Jamaika, da Hamburg Süd, magnífico paquete misto de passageiros e carga. O estafeta, orgulhoso e suado em seu terno de casimira azul marinho, o mesmo uniforme que cozinhava condutores e motorneiros dos bondes, entregou a carta da Electric na tarde daquele mesmo dia. Diógenes a leu apenas para confirmar sua previsão. “Ótimo. Temos uma guerra!” — Ó Pereirinha! Onde está o Pereirinha? – Gritou ele para uma redação quase vazia. Pergunta que era apenas uma formalidade, pois, pela hora, umas quatro da tarde, Pereirinha somente poderia estar no salão de sinuca ao lado do jornal, à Rua Senador Euzébio No. 12, bairro da Praça Onze. Como resposta à pergunta, um amanuense saiu apressado para buscar Pereirinha, personagem que não poderia ter outro nome: miúdo, franzino, cultor de um fino bigode aplastrado a Pommade Hongroise, cabelos fartos, acamados para trás à custa de muita brilhantina, pérola, provavelmente falsa, na gravata, abotoaduras de um ouro igualmente duvidoso, colete em chamalote preto, e manchas coloridas nas mãos: azul nos dedos da mão direita, pintados pelo giz do taco; amarela entre o indicador e o médio da esquerda, pintados pela fumaça dos cigarros Adonis Grossos. Pereirinha era o melhor. Era a garantia de que Diógenes Braga teria um jornal vibrante no dia seguinte. Os meninos nas ruas teriam uma forte e atraente história para gritar aos analfabetos e para vender aos alfabetizados apinhados nos pontos dos bondes e nas estações dos trens e barcas. — Pereirinha, o caso do bonde lá em Matacavallos: ele agora é teu! Quero que vás ao necrotério, quero que vás à vizinhança, descubras a família da tal portuguesa. Este assunto vai ficar importante. Já mandei levantar no arquivo os outros casos de atropelamento da Electric. Amanhã vamos sair com um editorial de guerra. Depois de amanhã damos o material que tu apurares. Isso tem que render pelo menos mais uns três dias. Pelo menos! Diógenes passou então a caligrafar seu editorial, uma diatribe contra os estrangeiros em geral, afunilando sobre a pérfida Albion, o banco Rothschild, The Rio de Janeiro Electric Street Railway Company e, muito especificamente, sobre Mr. Gross. Nesta ordem. Os navios da linha Hamburg Süd, como de resto qualquer navio que transportasse imigrantes, ofereciam cheiros diferenciados de acordo com o preço da passagem. No deck superior, qualquer emanação que viesse das profundas do navio era inapelavelmente afogada sob ondas sucessivas de Narcisse Noir, o dernier cri da casa Caron. As cerca de vinte senhoras que formavam a população feminina da primeira classe não vinham à mesa para o desjejum sem a toilette completa, que incluía fartas aplicações da tampa lapidada do precioso frasco de cristal. O ar do salão tornava-se espesso de aromas orientais que excitavam a imaginação de damas e cavalheiros e mais pesado ainda ficava logo em seguida, ao fim do café, quando eram acendidos os primeiros charutos do dia. Do convés superior, por apertadas e íngremes escadas de ferro, descia-se para o convés da terceira classe. Não havia segunda. A partir do momento mesmo em que se iniciava a descida, os aromas superiores fanavam-se e os inferiores venciam a batalha dos odores. Ia se fazendo notar a presença de graxa, tinta, carvão de pedra e secreções humanas várias. E Yuli, além do cheiro, sofria também com o frio molhado que o fazia arrepender-se a cada vez que lembrava ter abandonado sua Europa dos pogroms e da terra firme por aquela gélida e gotejante promessa de liberdade. Logo ele, que sonhava com mornos banhos de mar em uma Odessa inatingível, fora conhecer do mar a sua versão hostil. Por ser jovem e forte, foi designado para dormir no catre mais alto do beliche de três andares do alojamento que dividia com mais vinte adultos e seis crianças. A não ser que se estivesse doente, ali só se passavam as noites. Impossível ficar naquele cubículo depois que se acordava. Simplesmente não havia espaço. Ao amanhecer, era pular do catre, pegar a fila da latrina turca, a fila da pia de água salobra, a fila do desjejum ralo e a fila da portinhola minúscula que levava ao convés, onde entre passos perdidos e vagares cismarentos se gastava o tempo à espera de outra noite e outro dia. Faziam doze dias que o lentíssimo paquebot Jamaika havia partido de Hamburgo. A esta altura Yuli já não se incomodava mais com os percevejos e com o tifo que volta e meia abatia algum dos quase duzentos habitantes da terceira classe. Eram fatos da viagem, casualidades da vida ao mar. Acostumara-se com a água da bica, que jamais levava à boca, acostumara-se a matar a sede com o chá quente servido em canecas de metal, acostumara-se aos enjôos, que finalmente haviam cessado, acostumara-se ao choro das crianças e a um ou outro ataque de nervos de adultos. Apenas não se acostumava aos cheiros. A novidade chegou ao amanhecer do décimo-terceiro dia. Yuli passou a sentir na pele uma atmosfera mais morna e aconchegante, uma demonstração de que a natureza alternava maus-tratos com afagos. E isso também confirmava os cálculos do piloto, retransmitidos pelo foguista armênio de quem tinha ficado amigo, segundo o qual em um ou dois dias já se veria a costa brasileira. E foi o que aconteceu. Ao amanhecer do décimo-quinto dia Yuli foi acordado pela excitação de inúmeros idiomas que anunciavam a América. Não exatamente a Goldene Amerika, mas a Südamerika, uma outra América. O Jamaika navegou por mais umas seis horas até que, ainda antes de cruzar o través do Morro Cara de Cão, recebeu o prático que assumiu o comando e entrou com o vapor pela barra da Guanabara. Da amurada do convés da terceira classe a multidão não cessava de se acotovelar, de levantar crianças para que também elas pudessem vislumbrar a nova terra, uma gente que se cutucava, exclamava admiração e apreensão, chorando de alegria ou refletindo quieta sobre os tempos por vir. A paisagem no interior da baía ia desfilando lenta, a imponência dos morros contrastando com a placidez do arruamento e do casario harmonizado com o arvoredo. Então … era assim o Rio de Janeiro… O primeiro bonde do dia, absolutamente pontual, parou às 6:32 na praça do cais do porto, vindo de São Diogo e a caminho de São Francisco da Prainha, seu ponto final. Esse bonde trazia Mark, que o havia tomado na Praça Onze, bairro de negros e judeus. Nas últimas semanas Mark havia passado diariamente pelo escritório de representação da Hamburg-Süd no Rio, até receber a ansiada informação de que o Jamaika estava para atracar “amanhã ou depois”. Isso o deixou extremamente agitado e agora, mais do que nunca, lutava para refazer na mente, sem o apoio da velha foto, o rosto de Yuli, e de toda a família, que já não via há mais de dois anos. Mark lutava contra esse esquecimento, o qual sentia como uma traição. Ao seu lado no bonde vinha também o silencioso Sr. Knobl, representante da Associação Beneficente de Apoio aos Imigrantes Israelitas. Passaram a viagem calados, depois de um ligeiro levantar dos respectivos chapéus. O Sr. Knobl, resoluto e íntimo conhecedor de seus afazeres, dirigiu-se imediatamente ao prédio da Polícia Marítima para pegar seu passe de acesso ao Jamaika e embarcou na galeota que levaria alguns funcionários, o médico e a ele ao vapor que chegava. A bordo do Jamaika, como a bordo de tantos outros navios de imigrantes, ele procuraria os chefes de cada família de sua lista para saber de seu destino, saberia dos doentes e daqueles cujos vistos não estivessem em ordem. A tudo ele daria uma solução, com seu jeito discreto e afável, o jeito certo de lidar com burocratas que detinham o poder de abrir e fechar portas a seu capricho. 6:32 era o horário que atendia aos estivadores que moravam pelos lados do mangal de São Diogo e vinham em busca de diárias de trabalho nos porões dos navios que atracavam. As rodas já se formavam agitadas, apinhadas de negros e mulatos. Agrupavam-se em torno dos capatazes e disputavam sua atenção na hora em que estes escolhiam os melhores braços para as turmas de estiva do dia. Como roupa, vestiam apenas umas calças largas amarradas com um pedaço de corda e uns camisões feitos com o pano dos sacos de farinha de trigo. Descalços, a maioria, em tamancos uns poucos. A paisagem do cais do porto era familiar a Mark, que lá desembarcara dois anos antes. Foi logo ao prédio da Alfândega para saber que o Jamaika só viria a atracar depois do almoço, ele que fosse arrumar o que fazer até aquela hora. Mas hoje não iria arrumar nada para fazer. Aquele era o dia do seu irmão caçula. Era o dia em que suas histórias se reatavam. De toda a família, só restavam os dois e, a partir de agora, no Brasil. A Europa era uma noite, um cemitério. Decidiu não fazer mais nada senão esperar e se esforçar para reavivar na mente o rosto do irmão que chegava, dos morangos que colhia nos bosques de abetos à volta de Jitomir no despertar da primavera. Dos amigos que deixara, do regimento de cossacos estacionado em sua cidade e que aterrorizava seu bairro com cavalgadas bêbadas e mortíferas, aos gritos de Hep! Hep! Da mesa do almoço aos sábados, onde sempre havia um convidado na cabeceira fronteira à do pai e onde, invariavelmente, se discutia política. Aos poucos o fluxo de lembranças tornou-se caudaloso e, pela primeira vez em dois anos, Mark sentiu que ia chorar. O bonde das 6:32 trouxe também, de carona, o menino com seu bolo de jornais, que não cessava de apregoar: “a lavadeira que o bonde da elétrique matou deixou seis filhos. A elétrique não quer pagar nem o enterro”. O menino não sabia ler, os estivadores não sabiam ler. Ele e os outros moleques que distribuíam os exemplares da Folha da Capital recebiam as instruções sobre as manchetes do dia diretamente do chefe da oficina, que lhes contava o que vinha escrito naqueles signos do alto da página, por sobre um desenho lúgubre a bico de pena, mostrando crianças chorando em torno de uma sepultura. Faits divers tornados história oral. Ao ouvir os gritos do moleque jornaleiro Mark desviou-se de suas lembranças. Pagou cem réis para saber a continuação da triste história da lavadeira atropelada pelo bonde da elétrique e procurou um banco para sentar-se. A curiosidade de Mark havia se aguçado desde que lera, na edição do dia anterior, a mesma notícia que havia irritado Mr. Gross. No enorme editorial da primeira página, assinado pelo próprio dono do jornal, acusava- se a Rio de Janeiro Electric Street Railway Company de corromper o governo da República para obter concessões, promovendo um verdadeiro Panamá a serviço da coroa britânica e do banco Rothschild, e de estar matando indiscriminadamente a população por não querer gastar em equipamentos mais seguros. Mark, cujo domínio da nova língua ainda deixava muito a desejar, ia lendo as matérias com evidente esforço, franzindo a testa e sussurrando as palavras que iam aos poucos montando frases conexas. Algumas expressões, entretanto, ainda estavam longe de fazer parte do universo vocabular de Mark: “ultraje ao lábaro”, “opíparas burras”, “contumácia procrastinatória”. Uma, entretanto, deixou os pelos de Mark eriçados: “banca judaica”. Esta ele entendeu perfeitamente bem. O navio finalmente surgiu no campo de visão de Mark, puxado pelos rebocadores. Faltava pouco. Mark ia acompanhando a manobra a pé, pela linha do cais, até chegar ao ponto aonde, lentamente, como um cavalo cansado, o Jamaika enfim atracaria no novo cais da Praça Mauá. Sem demora, os trabalhos de amarração diante do Armazém 2 se iniciaram. E ele finalmente divisou a cabeça de Yuli, uma cabeça envolvida por uma revolução de impenteáveis cabelos ruivos. Do alto da amurada, e pela primeira vez em seus dezoito anos de vida, Yuli viu um negro. Era como tornar viva uma imagem de contos infantis, nas quais negros eram entes colossais portando cimitarras, entrando e saindo de lâmpadas maravilhosas. Até então, negros não eram reais, eram literatura. E agora eles estavam ali, muitos. Yuli focalizou um deles. Ágil e forte, apesar da cabeça já bastante invadida de cabelos brancos. Era extremamente hábil nas laçadas que dava com os grossos cabos arremessados de bordo. Ia envolvendo os cabeços de amarração fixados na beira do cais, aprisionando o navio, domando seus balanços, imobilizando-o afinal. Era o mais ativo da turma de atracação. Movido por uma alma de menino, assim que terminou a faina da amarração passou a subir pelos cabos para neles colocar as rateiras, dando ordens aos outros com ação e gritos. Gritos que portavam as primeiras palavras que Yuli ouvia nesta nova língua, cuja sonoridade lembrava a das cantigas de sua mãe e a dos profusos praguejamentos de seu pai. Anos e anos mais tarde Yuli se lembraria nitidamente daquele negro inaugural da América. Mark gritou para Yuli. Gritou, gritou forte, mas Yuli não o ouviu, estava fixado naquele negro laçando os cabeços e colocando rateiras. Já eram quase três da tarde, a faina de atracação findava. Na primeira classe, nada daquele movimento excitado e abrutalhado que agitava os imigrantes. Das cinqüenta e poucas pessoas que povoavam esse deck, pouco menos de vinte desceriam no Rio de Janeiro. Estas teriam apenas o trabalho de mostrar seus papéis a obsequiosos oficiais da polícia marítima e sequer imaginavam o que fosse passar pelo rígido escrutínio de documentos, pela inspeção de saúde e, muito provavelmente, pela quarentena na Ilha das Flores, que aguardava os demais passageiros. Era simplesmente cumprimentar o comandante, agradecer pela excelente viagem e descer, senhores de suas prerrogativas, envolvidos na difusa névoa de Narcisse Noir e Habanos, seguidos por uma profusão de taifeiros emprestados pelo comandante para carregar as necessaires e pastas de mão para os automóveis que os levariam aos hotéis e residências que eram seu destino. Baús, valises, caixotes, estes viriam mais tarde, baixados pelo pau-de-carga do navio, diretamente sobre as carroças e burros-sem-rabo, enquanto os despachantes resolveriam as formalidades com a alfândega e os transportadores. Finalmente os gritos de Mark atraíram a atenção daquela cabeça orlada de cabelos vermelhos. Yuli procurou a origem dos gritos e divisou o braço que agitava um lenço branco, junto a dezenas de outros. O negro e agora o irmão no cais estranho mostravam que havia transposto uma barreira definitiva. Ele se deu conta de que dali em diante não havia mais Europa. Dois anos antes, quando Mark saiu de sua terra, Yuli era ainda um meninão que lia tudo o que lhe caía às mãos e não parava de falar de sua enorme vontade de ir embora, como tantos outros antes dele. Pedia que o mais velho o levasse, mas isso não era possível. “Te chamo quando eu tiver arrumado a vida”. À medida que a guerra civil ia sendo vencida pelos vermelhos, os cossacos tornavam-se mais e mais mortíferos na terra-de-ninguém onde a vida de um judeu não valia grande coisa. Yuli, então com dezesseis anos, subitamente recebeu o impacto da maturidade poucos meses depois da partida de Mark, quando seu pai e sua irmã Eva, que eram toda a sua família, foram mortos por um bando de cossacos bêbados. Quando o bando se aproximava, incendiando as casas da vizinhança, Yuli obedeceu às ordens do pai e escapou para o bosque pela janela dos fundos da casa, certo de que o pai o seguiria. Não mais os viu vivos. Daquele momento em diante seu único objetivo concentrou-se em sair de lá. Solto no mundo, foi morar com um tio fora do gueto e passou a trabalhar como auxiliar de tipógrafo. Mais um ano e essa tipografia foi tomada pelos comissários do povo que assumiram em definitivo o poder em Jitomir, mas a essa altura Yuli já tinha juntado dinheiro e expediência suficientes para escapulir para a Polônia, de lá para Hamburgo e comprar uma passagem de ida para o Brasil. Havia um navio – o Jamaika – a ponto de partir para o Brasil e a Argentina. Providencial. Além do Sr. Knobl, da Associação Beneficente de Apoio aos Imigrantes Israelitas, havia também um representante da Associazione di Mutuo Soccorso. Eles reuniam os membros de suas comunidades para os trâmites de desembarque. Dependendo do aspecto do viajante isso poderia ser trabalhoso. Um acesso de tosse poderia mandar toda uma família para a Ilha das Flores em quarentena ou mesmo para a deportação. Um chapéu mais desabado poderia levar o inspetor a tomar o candidato a desembarque por mais um cáften. Mas esta leva não deu maiores trabalhos ao Sr. Knobl. Ele reuniu os dezoito membros de sua lista, incluindo Yuli e, num gesto que abarcava a todos, mostrou ao inspetor da polícia marítima que aqueles eram os “seus”, cujos papéis e inspeção de saúde já haviam sido devidamente aviados. Trouxas e malas nas mãos, desceram pela escada do portaló e, enfim, pés no chão do Brasil. Finalmente chegava a hora da longa e comovida sucessão de abraços e beijos. Para aqueles que tinham quem os esperasse. Mark e Yuli se conheceram de novo. Correram um para o outro por instinto, mas logo passaram a se olhar, a se reapresentar. A criança que Mark havia deixado para trás – agora um homem feito, quase irreconhecível – apenas fugazmente assumia a imagem familiar de seu velho retrato. Para Yuli, Mark havia diminuído um pouco de tamanho, afinal ficara mais baixo do que ele. Mas a estatura de irmão mais velho, experiente e precursor, permanecia. E mais abraços e beijos. E veio a descrição de como os ucranianos haviam assassinado o pai e a querida e delicada Eva dos sapatinhos de verniz, dando vida ao já contado antes em poucas cartas. E ainda bem que mamãe já havia morrido antes, para não passar por isso. E o que se aprende numa tipografia? E o que era feito de Fulano? E de Sicrano? E como era boa a nova terra! Como foi a viagem? Como te entendeste com os outros? Veio mais alguém de Jitomir? Tu moras bem, aqui? Vomitaste muito? Quando eu vim, vomitei sem parar. Eu menos. A gente acostuma. E os livros? Ainda lês muito? Papai era tão orgulhoso das tuas leituras. E como estás grande e forte. Eu treinei box no clube dos metalúrgicos. Aqui tem um ginásio perto de nossa pensão. Lembras do Mendel que me batia, o covardão? Um dia dei uma surra no Mendel, não agüentou nem dois rounds. O que é feito daquele infeliz? É comissário dos vermelhos. Então Yuli pecebeu que estava mareado em terra firme. O corpo se movia compensando Mr. Gross leu apreensivo o cabograma de Londres, remetido logo no início do expediente na City, três horas antes. Queriam explicações sobre como e por que um acidente rotineiro poderia motivar tamanha agitação. Mas de que forma responder, na linguagem discreta e concisa dos telegramas, o que demandaria uma análise sutil e franca a respeito das práticas jornalísticas de Diógenes Braga e de tantos outros com os quais Mr. Gross vinha lidando nesses quase vinte anos de Brasil? Mr. Gross nunca se cansava de admirar, com um orgulho paradoxal de vítima da própria força, da velocidade com a qual Londres se informava dos acontecimentos envolvendo os interesses da Coroa no Rio. O serviço de inteligência da embaixada nada deixava ao acaso e monitorava tudo o que pudesse acarretar qualquer abalo nas relações – no passado mais sólidas, agora tão mais friáveis – entre os dois países. Ontem os moleques gritavam as diatribes do editorial de Braga e hoje o cabograma aterrissava na imensa escrivaninha do diretor-superintendente da Electric. Um enfadado e burocrático Mr. Gross respondeu com um cable no qual explicava “NOTICIÁRIO JORNAL RIO 4JAN21 PRESSÃO PARA ELEVAÇÃO ORÇAMENTO PUBLICITÁRIO VG CONTINUANDO HOSTILIDADE MANIFESTA NOTICIAS ANTERIORES PT DECIDI SUSPENDER TOTALMENTE PUBLICIDADE PT SUSPENSÃO SEGUIU ORIENTAÇÃO BOARD CF CABLE 23MAI19 PT” Mr. Gross acrescentou também no cabograma que iria ter com o Sr. Braga nos próximos dias e iniciaria gestões pessoais visando contornar essa animosidade a qual, ele tinha certeza, estava longe de ser insuperável. A resposta, em menos de uma hora, veio pragmática: “SHUT HIM UP ST BUY THE KID SOME Era terça-feira e Mr. Gross sabia exatamente onde iria encontrar Diógenes Braga. Seria à noite, em casa de Mme. Charlotte, no sóbrio palacete de muros em pó-de-pedra na ladeira de Santa Tereza, durante um dos saraus pour des chevaliers que se iniciavam pelas oito e meia da noite e se estendiam madrugada adentro. Mme. Charlotte tinha uma casa muito bem instalada e decorada, alcatifada de tapetes orientais, fauteuils e canapés espaçosos e aconchegantes, um excelente e bem afinado Bechstein de meia cauda no centro da ampla sala de estar e, sobretudo, as mais frescas e encantadoras cocottes, recém-chegadas de França, todas muito limpinhas, cheirosas e prendadas, dispostas a tornar reparador e inesquecível o lazer des Messieurs. Nunca faltava gelo em casa de Mme. Charlotte que, à chegada de cada convidado, oferecia uma taça de refrescante, borbulhante Crémant de Cramant ou, à sua falta, uma não menos nobre Cristal. Os convivas de Mme. Charlotte bem que mereciam esses requintes, pois representavam o que de mais fino e cultivado havia na Capital Federal, como o Juiz C, o Ministro P, o diretor F, do South American & Caribbean Bank, e mais esse e mais aquele, esgotando todas as letras do alfabeto, inclusive G de Gross e B de Braga. G & B se encontraram no sarau dessa terça-feira. Quando Braga chegou, Gross conversava animado com o empreiteiro L sobre as caçadas que voltaria a fazer no primeiro verão de sua aposentadoria, dali a coisa de um ano. Iria para a fazenda que tinha em Homa Bay, no lago Victoria, Kenya, de onde partiria em safaris infindáveis. Ao divisar a figura indefinível de Diógenes Braga, sua primeira reação foi de convocá-lo para um desforço a punhos, com a gravidade e a correção de dois personagens de uma estampa vitoriana. Mas não, não se tratava de alguma ofensa pessoal a ser reparada. Eram apenas negócios, ou business as usual, como dizem os americanos, tão práticos. Bobagem irritar-se. Mas não pôde deixar de mostrar um ar de qualquer coisa, um ar de sorridente incômodo diante da presença – ainda distante, à porta – de um serzinho assim tão… tão… Braga sabia da presença de Mr. Gross e fez tudo para retardar o encontro tanto quanto possível. Cumprimentou ruidosamente Mme. Charlotte a quem, em francês escorreito, chamou de Alegria das Noites Tropicais. Íntimo da casa, já se aproximava de uma e outra jovem às quais afagava os rostos e chamava pelos prenomes, sempre em francês. Criou-se na casa a cultura de, para Mme. Charlotte, não ser de bom tom mencionar, em público, a alta voz, os nomes dos convivas. Eles que se nomeassem e se tuteassem, se assim o desejassem. Mas – e este era um dos segredos de seu sucesso – ela jamais se daria ao prazer da indiscrição pública. Sequer os prenomes. Apenas um “Ora, mas que prazer, doutor, quanta honra”, ou, “Oh, há quanto tempo o meritíssimo não nos dá a alegria da companhia”, ou “Excelência, gostaria de apresentar nossa recém-chegada Ninon. Não é catita?” Diógenes era talvez a única exceção. Gostava, fazia questão, quando ali chegava, de que Mme. Charlotte, em seu tom de arauto melífluo, exclamasse em afetada e evidente falsa surpresa “Mais quel plaisir Doctorrr Diogèeennnnnee”, indo estender-lhe a taça inaugural por conta da casa. Mais do que seu próprio nome, Diógenes se derretia com o Doctorrrr, devidamente corroborado pelo anel com um bojudo rubi a atestar-lhe o currículo. Cumprimenta um, acena para outro e Diógenes vai aos poucos se aproximando do ponto da sala onde Mr. Gross prelibava bichos empalhados em uma fazenda na África. Aluno aplicado, habituado aos usos da terra, Gross ia acompanhando discretamente a evolução do jornalista, evitando cruzar olhares e tornando o encontro que inevitavelmente ocorreria em uma feliz surpresa. Que, finalmente, ocorreu: — Mas vejam só quem está aqui, my good friend Gross, como vai esta bizarria? – Disse Braga estendendo-lhe a destra, enquanto a esquerda já o envolvia para o indefectível tapinha nas costas. — Oh, quite well, my dear Braga – estendeu a mão para o shake hands e tentou evitar o tapinha nas costas, com o qual nunca se acostumara nestes anos todos de Brasil. Durante sua primeira noite em terra firme, Yuli estranhou a cama imóvel e o teto alto, muito alto, que lhe trouxeram uma sensação de desproteção. Mal dormiu. O calor era insuportável, como os seus sonhos. Acordou inúmeras vezes sem saber o que pensar. Jitomir, Varsóvia, Hamburgo, Rio de Janeiro. Estava no Brasil, na pensão onde morava seu irmão Mark, Rua Senador Euzébio, Praça Onze. Localizava-se e voltava a cochilar. Acordava sobressaltado pelos gritos de Hep! Hep! Que ecoavam em sua vida. Sentava-se na cama, gotejando de um suor grosso. Mas o que ele ouvia eram apenas cães que, ao longe, saudavam galos ainda mais distantes. Tudo em paz. Nem cossacos, nem comissários. Na cama ao lado, Mark dormia embalado pela calma solene dos veteranos. Yuli olhava com admiração aquele irmão corajoso que desbravara a nova terra e já era senhor da situação. Até ao calor se acostumara. Não suava, não se debatia, apenas dormia seu sono linear. Moravam na Hospedaria Vianna, onde Mark até então alugava uma vaga em um quarto que dividia com outros cinco. Com a chegada do irmão, conseguiu mudar-se para um quarto com apenas duas camas, mais caro, mas um sacrifício prazeroso para melhor acomodar o caçula. O sono não engrenava. Yuli decidiu levantar-se e ir para a janela em busca de um pouco de ar fresco. Não iria encontrá-lo, pois aquela era uma noite calmosa, abafada. Foi tateando, com medo de acordar a pensão toda com os rangidos do soalho. Abriu cuidadosamente a janela do quarto no sobrado e passou a explorar a paisagem deserta da rua iluminada por fracas e espaçadas lâmpadas que serviam apenas para ser refletidas pelos trilhos polidos dos bondes que logo mais iriam começar a trafegar. Sentou-se no peitoril e começou a se acostumar. — Fecha esta janela, Yuli Aquela voz, do fundo da escuridão, assustou o rapaz. — Mas está muito calor, não tem ninguém na rua… — Não são as pessoas, são os mosquitos. E a Yuli foi ministrada sua primeira lição prática de saúde pública. Nunca dormir fora de um mosquiteiro ou deixar de fechar as janelas antes do anoitecer. Como mosquiteiro não havia naquela pensão modesta, o remédio era enfrentar o calor. As janelas eram fechadas ao entardecer e assim ficavam até a manhã do dia seguinte. A morrinha nos quartos era comparável à do navio. Apesar dos medos, o Rio de Janeiro já não era mais aquela pocilga tropical que matava seus habitantes e, sobretudo, os visitantes, de febre amarela, tifo, cólera, peste bubônica, varíola e doenças pulmonares de etiologia vária. Tornara-se uma cidade bonita, ingressara, pela marreta de Pereira Passos e as desinfecções de Oswaldo Cruz, nas luzes do novo século. Mas já os mosquitos voltavam e, ainda que Mark não tivesse vivido na cidade ao tempo em que as epidemias grassavam, tinha nesses seus poucos anos de experiência recebido por tradição oral os alertas necessários. E para mantê-lo sempre em guarda havia os reclames nos jornais e nos bondes. Reclames de remédios definitivos contra a tísica, contra coceiras, contra a asma, contra febres, remédios específicos para as senhoras, remédios, inclusive para a obtenção de favores: A noiva do meu vizinho Entre ternura e carinho Me disse um dia essa frase: Se quiser minha alegria Cura tua blenorragia Com uso de Ganostase. Mark contraíra o medo das doenças. E tentava contaminar Yuli. Essa quarta-feira 5 de janeiro de 1921, primeiro dia em que Yuli amanheceu brasileiro, foi também seu primeiro dia de trabalho. Evidentemente não tinha roupas apropriadas, apenas uma pequena seleção de peças em flanela e casimira. Casacos, ceroulas, longas meias. Mark emprestou-lhe uma camisa mais leve e eles partiram. Yuli, empolgado e transbordante de boa-vontade, carregou a pesada mala de mascate de Mark, bojuda de novidades em cortes de tecido, bijuterias, perfumes e figurinos. Começavam o dia de visitas à clientela, composta por donas-de-casa de Madureira, Ramos, Penha, Cascadura. Esta era sua região. Yuli sentiu a dureza da nova vida já no primeiro trecho, a pé, da pensão até a Central do Brasil, de onde tomariam o trem para Ramos. A cada passo a mala pesava mais e, antes que ela se tornasse insuportável, Mark tomou-lha, iniciando um revezamento que, a se cumprir seu desejo, duraria muitos anos. No trem, vazio pela manhã na direção dos subúrbios, sentados no banco de pau, Mark ia passando ao caçula as primeiras palavras que ele deveria aprender. Um passageiro vizinho aos dois logo se intrometeu na conversa: — Os senhores são de onde? — Da Rússia – respondeu Mark àquele senhor longilíneo e aprumado, que vestia um terno muito antigo, mas bem passado, gravata magrinha sobre uma camisa engomada e colarinho de celulóide que lhe completava o ar de pobre empertigado. — E os senhores, já aprenderam o português? — Poquinho – ia dizendo Mark, quando o vizinho emendou: — Pouquinho, repita comigo: pôu… pouquinho — Pouuquinho — disse Mark e Yuli, já sorrindo, fez a segunda voz: — Pou-qui-nho — Mas é bem desempenado este seu conterrâneo – disse o vizinho num tom que, se Mark dominasse a língua um pouco melhor, ia perceber que tinha um quê de sardônico. —Tem jeito… uma quedinha para aprender a nossa língua. — Meu irrmon. — Ão. Irmão. Vai longe – disse o vizinho, levantando-se para saltar em Piedade – Vai longe! No Brasil, vocês, estrangeiros, vão longe. Nós é que somos uns bobos. — Irmão – repetiu perfeitamente Yuli para um admirado Mark, que nunca conseguira reproduzir o “ão” anasalado do português do Brasil, ao mesmo tempo em que o sujeito se dirigia à porta do vagão sem ouvir mais esta conquista fonética do estrangeiro recém-chegado. Eles voltaram ao yidish coloquial e Yuli lembrava que, assim que saltassem, estaria na Na noite de terça para quarta-feira, encerrado o pas-de-deux de desencontros estudados, um Braga bem-humorado parecia brincar com o mau-humor de Gross o qual, ainda que não demonstrasse qualquer irritação, estava irritado. Braga finalmente aproximou-se e trouxe como oferta de paz uma menção àquele tesouro de Ninon, a nova aquisição da casa, aquele bijuzinho de Ninon, que não falava patavina de português: — Se dependesse de mim, não aprendia nunca. Ia perder a graça. As grandes palavras da vida soam francês. Ouve só: miché, rendez-vous, minette, l’amour, e uma que nem precisa ser francês para reunir o som, o sentido e a grandeza de França: sacanage… Gross ruborizava com a desenvoltura que Braga exibia no campo da lascívia oral. Brilhante Braga: desarmava a irritação do inglês e ainda o acuava com palavras que invadiam seu último refúgio de pudor. — Tu não tens preparo para enfrentar uma Ninon – reagiu Gross, evidenciando a diferença de compleição entre ambos – ela acaba contigo, consome o resto de ti… — Morte gloriosa! – Atalhou Braga, com ar de tribuno – A verdadeira glória que fica, eleva, honra e consola é morrer na apoteose de uma noite com Ninon, seu cheiro impregnado nos dedos – e demonstrava o que dizia passando o indicador e o médio pelas narinas, aspirando fundo, indecente. Gross encabulava, mas seguia com essa conversa intimista: — Mas nem em pensamento, Braga. A prima nox é de Sua Excelência, tu bem o sabes. Braga bem o sabia. Sua Excelência, o Ministro P, a mais alta autoridade da casa, era um suserano cioso do droit de cuissage, prerrogativa da qual nunca abria mão: as cocottes recém-chegadas pertenciam a ele por um mês. Obviamente que mediante régia retribuição a Mme. Charlotte. E ai de quem contrariasse essa elementar regra de precedência republicana. Sua Excelência caladamente demonstraria seu arsenal de maldades legais e burocráticas para reduzir a vida do incauto comborço a uma penosa sucessão de misérias. — Andas vendendo muito jornal, Braga? — Quem me dera, meu caríssimo Gross… tu bem sabes que com minhas velhas máquinas de nada adianta editar o melhor jornal da cidade se eu não disponho de equipamento para imprimir o que baste para atender ao nosso crescente número de leitores. Era a deixa que ansiosamente aguardava. Parecia falar a uma grande platéia. As palavras saíam enfileiradas num encadeamento de quem ensaiara o que dizia. O inglês, no fundo, admirava a caradura do jornalista, que, sem maiores preâmbulos, — Máquinas, Braga? — Máquinas, Gross. Máquinas. — É como um doce para uma criança… – o inglês ecoava o cabograma. — Doce como o poder, Gross, doce como estar submetido a cada governo e, ao fim, A conversa dos dois transcorria reservadamente, numa saleta íntima anexa ao salão, o que não impediu Mme. Charlotte, conhecedora dos hábitos de seus convivas, de trazer Régine para servir champagne a Braga, e Mina com um Lepanto para Gross. A veemência de Braga não chegava a sobressair, abafada pelo brouhaha que tomava conta de toda a casa, a essa altura tão concorrida como uma sessão da Câmara. Régine e Mina aboletaram-se junto a seus pares e, por carícias quase pudicas tentavam roubar-lhes a atenção. Em vão. Braga falava como se elas não existissem: — O Correio, o Brazil, o Commercio já têm rotativas. Tu sabes o que é uma rotativa? Deves saber, o Times inaugurou a primeira, ainda a vapor, vai para mais de cem anos. Já ouviste falar em Linotype, em Ludlow, em Marinoni ? São máquinas moderníssimas, estonteantes: nos jornais modernos o texto já é composto em linhas de chumbo completas, na medida certa. Não se junta mais letrinha por letrinha. Um jornal como o meu não pode levar a tarde e toda uma noite fazendo metade do que os outros fazem em três, quatro horas. Gross mostrava-se tão fascinado com a eloqüência de Braga que mais parecia um acionista em potencial do que alguém prestes a ser extorquido: — E quanto custa esse doce? — Ah, não é grande coisa, nada que possa abalar… – fez um muxoxo de desimportância: – isso tudo deve andar na casa dos mil contos de réis… Nessa mesma noite dessa terça-feira, na solidão da redação vazia, Pereirinha revia as anotações resultantes das andanças do dia. Não havia conseguido grande coisa. No necrotério da Santa Casa, para onde o corpo da lavadeira Maria Couceiro fora levado, o repórter soube que ninguém surgira para reclamá-la e ela fora enterrada como indigente. Na casa-de-cômodos em Paula Mattos, onde a lavadeira morava, os vizinhos sentiam pena, pobrezinha, santa alma, mas pouco sabiam dela, alguns sequer lembravam-se daquela senhora sempre recolhida, de conversa seca e sem graça, mesmo quando lavava a roupa junto às outras lavadeiras no tanque do pátio central da cabeça-de-porco. Uma das vizinhas, beiroa como a finada, talvez por isso um pouco mais chegada, dizia que a pobre enviava tudo o que ganhava para alguém em Portugal que ela atinava quem pudesse ser. “Não tinha ninguém por aqui, a infelizinha”. O jornalista entrou sem a menor cerimônia na enxovia ocupada pela lavadeira e já a encontrou revirada pelas vizinhas, que roubaram o puderam da finada. Desconsolado passou a revirar o que fora deixado. No fundo de um caixote que fazia as vezes de baú e do qual o que prestava já havia sido surrupiado, encontrou um discreto cordão que, puxado, levantava um fundo solto e, dentro, um saquinho de pano com uns poucos papéis e coisinhas. Consistiam de anotações em garranchos quase indeci-fráveis, feitas em papel de embrulho: contas em colunas mal alinhadas, possivelmente o fiado das freguesas, coisa parca, que não passava dos cinqüenta milréis; uma fotografia, quebrada e desgastada, colada sobre um cartão, mostrava um casal contra o fundo de pano preto de um estúdio, como se usava uns trinta anos antes, ela fechada por um negro xale, ele fechado por um imenso bigode. Mais alguns achados: uma figura de santa gravada em um berloque de louça, um terço em contas de vidro, mais uma imagem de santo, os olhos muito azuis, em litografia, encardida pelo manuseio, com as marca dos dedos de Maria Couceiro a testemunhar esta sua única relação. Mais quinquilharias, lembranças miúdas. Um fiapo de história que ali se interrompia, sem seqüência ou importância. Foi então que Pereirinha, contrariando seus mais caros princípios, cometeu uma caridade: guardou consigo os poucos papéis pessoais e a foto, deixando as quinquilharias para que a saloia da senhoria roubasse ela mesma o que lhe interessasse e o resto jogasse fora. Achou que, se não fizesse isso, uma história de vida morreria com sua dona, em uma lata de lixo. Agora, na redação, revia o antigo casal da foto, o papel encardido com as contas, e algo que lhe pareceu uma carta bastante encardida “da sua Titi, que muito a estima”. Viu também algo que lhe passara desapercebido quando vasculhou os papéis na cabeça-de-porco: uma enxovalhada caderneta da Caixa de Pecúlios de Lisboa em nome de Maria Couceiro, aberta em 1884 e com lançamentos anuais, sem falhar, até 13 de dezembro de 1920, e que totalizavam, a não ser que a caligrafia lhe enganasse, 143:885$440. Suas mãos tremeram. — Ó Pereirinha, desse jeito não temos jornal amanhã – gritou do térreo Bernardo, o chefe da oficina – desembucha logo essas tiras que o compositor já está a querer se ir. Pereirinha então mostrou por que seu patrão o considerava o melhor. Encerrou as divagações, concentrou-se, e passou a escrever a primeira das tiras na caligrafia culta e ágil que os tipógrafos reconheciam: “Os moradores de Paula Mattos estão indignados com o descaso e a usura da The Rio de Janeiro
Electric Street Railway a qual, ao recusar-se a custear as exhequias da pobre proletaria…
enterrada como indigente… filhos chorosos… família ao desamparo… não deixou nada”

Em pouco mais de uma hora Pereirinha preencheu toda uma página de jornal, com a ajuda do desenhista Schipa, que deixara preparada, desde cedo, uma enorme e tosca charge retratando um gordo John Bull, identificado por um colete estampado com a Union Jack, charuto espetado entre dentes, cartola, a conduzir um bonde que atropelava uma mulher esquálida, enorme trouxa à cabeça, e diversos filhos agarrados à sua saia. Tudo conforme orientação detalhada de Diógenes.

Source: http://observatoriodaimprensa.com.br/download/655AZL_MauroMalin.pdf

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The Knowledge Engineering Review , Vol. 23:1, 101–115. c 2007, Cambridge University PressDOI: 10.1017/S0269888907001270 Printed in the United KingdomA context-sensitive framework for lexical ontologiesTONY VEALE and YANFEN HAO School of Computer Science and Informatics, University College DublinE-mail: tony.veale@ucd.ie, yanfen.hao@ucd.ie Human categorization is neither a binary nor a contex

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